Em fevereiro de 2011, Pedro e eu retomamos os
encontros com os colaboradores no desenvolvimento do roteiro, com uma
alteração na equipe: agora contávamos com a presença saudosa e iluminada
da querida Chris Riera. É dela uma frase que me marcou e que tem
norteado não só esse trabalho como todos os outros que pretendo fazer:
"menos trama, mais drama". Para mim - que sou uma pessoa muito ligada às
tramas nas estórias - esse foi um alerta de procurar sempre o que há de
mais humano e delicado nas relações entre personagens. Isso se
transformou numa orientação geral para a estória que estávamos criando,
apesar de haver nessa estória uma trama muito clara e definida. Como em
tudo aliás, o que interessa é o equilíbrio, nesse caso, o equilíbrio
entre Trama e Drama.
O processo de criação de uma estória é
necessariamente caótico, fora de ordem, múltiplo e sincrônico. As ideias
evoluem, se transformam, são jogadas fora. Rumos mudam, perspectivas
surgem, coincidências se apresentam. E às vezes, você se vê aprisionado
num beco e de uma hora pra outra, parece que tudo que foi criado até ali
caiu por terra. Escrever drama pode ser dramático. Em compensação,
creio que essa tensão está na raiz do desafio que motiva alguém a se
meter numa tarefa que vai levar na melhor das hipóteses alguns anos para
ficar pronta. Não é simples construir uma estória que fique de pé, com
um mínimo de coerência interna, sem furos gigantescos, e que sirva pra
alguma coisa. Escrever envolve um grande risco: o risco de não ficar
bom. Melhor assim, o risco é que tempera o que fazemos. Onde não há
risco, não há muita coisa.
Desde o início, tínhamos a ideia de fazer um filme
sobre um grupo de amigos em um sítio (poucos personagens + única
locação = produção barata). Isso nos levou a procurar referências que se
passavam em uma casa de campo. Lembramos do filme Invasões Bárbaras (e o
seu antecessor, A Queda do Império Americano, ambos de Denys Arcand),
onde um grupo de amigos se encontra em uma casa de campo e discutem
temas contemporâneos em alto nível. Lembramos também do tom minimalista
dos contos de Tchekhov, onde as personagens deixam apenas transparecer o
que sentem. Fomos checar também o filme do Woody Allen, Sonhos Eróticos
de Uma Noite de Verão, mas descartamos o tom farsesco. Queríamos um
filme realista, não podíamos nos deixar seduzir pelo burlesco. Outros
dois filmes se juntaram às nossas referências: Pecados Íntimos, de Todd
Field, com tempos dilatados e tensões ocultas, e O Reencontro, de
Lawrence Kasdan, um clássico dos anos 80 onde um grupo de amigos se
reúne e passa a vida a limpo. Em todos esses casos, o drama é a moeda
corrente. Era isso que procurávamos.
Queríamos um filme que levasse à reflexão e à emoção, mas não só isso. Também tinha que ser um daqueles filmes que te capturam e não se deixam largar. E para isso, tem que existir uma trama forte. O Pedro comentou há pouco (depois de ler um esboço desse post - e este trecho está sendo reescrito hoje, dia da publicação do post - e digo isso porque esse é um blog para pessoas que gostam de escrever, ou ao menos de saber como uma estória é feita. E o curioso aqui, se me permitem um aparte longo desse jeito, é mostrar um pouco do processo de escrever, que é um vai e vem permanente, em que se trabalha e retrabalha o texto inúmeras vezes, em múltiplas camadas, como se fossem demãos de tinta), e o Pedro disse: "eu vejo filmes com você desde que nasci, e me lembro que você sempre olhava para o relógio do dvd e dizia 'faz 20 minutos que o filme começou, mas a estória ainda não'". Isso nos revelou que gostamos também, e muito, de filmes em que as coisas acontecem, a estória vai pra frente, a trama nos fisga e nos aprisiona na cadeira. O Robert McKee diz que as estórias tem que ter um "Inciting Incident" - que traduzi como Disparo Dramático, no Story Touch. Quando isso acontece, nós, o público, ficamos presos à estória, esperando uma resposta para a pergunta que inevitavelmente surge: como isso vai acabar? Se você - cineasta, autor, escritor, ou qualquer um ligado às artes narrativas - conseguir plantar essa pergunta na mente do público ele vai te seguir até o final.
Queríamos um filme que levasse à reflexão e à emoção, mas não só isso. Também tinha que ser um daqueles filmes que te capturam e não se deixam largar. E para isso, tem que existir uma trama forte. O Pedro comentou há pouco (depois de ler um esboço desse post - e este trecho está sendo reescrito hoje, dia da publicação do post - e digo isso porque esse é um blog para pessoas que gostam de escrever, ou ao menos de saber como uma estória é feita. E o curioso aqui, se me permitem um aparte longo desse jeito, é mostrar um pouco do processo de escrever, que é um vai e vem permanente, em que se trabalha e retrabalha o texto inúmeras vezes, em múltiplas camadas, como se fossem demãos de tinta), e o Pedro disse: "eu vejo filmes com você desde que nasci, e me lembro que você sempre olhava para o relógio do dvd e dizia 'faz 20 minutos que o filme começou, mas a estória ainda não'". Isso nos revelou que gostamos também, e muito, de filmes em que as coisas acontecem, a estória vai pra frente, a trama nos fisga e nos aprisiona na cadeira. O Robert McKee diz que as estórias tem que ter um "Inciting Incident" - que traduzi como Disparo Dramático, no Story Touch. Quando isso acontece, nós, o público, ficamos presos à estória, esperando uma resposta para a pergunta que inevitavelmente surge: como isso vai acabar? Se você - cineasta, autor, escritor, ou qualquer um ligado às artes narrativas - conseguir plantar essa pergunta na mente do público ele vai te seguir até o final.
Mas o processo não é só de acertos. Várias ideias
dispersivas surgem no caminho. Vejam algumas. E se o grupo de amigos
fosse até a cidade e entrasse numa briga com os jovens habitantes
locais? E se - por algum motivo - eles matassem o caseiro e tivessem que
se livrar do corpo? E se fosse apenas um filme de relacionamentos
afetivos, sobre a sexualidade? Descartamos esses caminhos, ou por serem
pueris, ou por estarem em outro tom. O que queríamos era um drama
humano, que se levasse a sério e nos fizesse refletir sobre nosso tempo e
nossos desejos.
Voltamos à busca do equilíbrio entre trama e
drama. Havíamos partido de um caminho que privilegiava o drama: um grupo
de amigos que se reencontra depois de dez anos e reavalia suas vidas.
Mas nosso impulso nos levou a mesclar o drama humano com uma trama - se
possível de pegada shakespeareana, esse o grande mestre da composição
entre trama e drama. Sou leitor de Shakespeare, mas não um estudioso.
Do pouco que sei, uma coisa me chama a atenção. Suas peças tem uma
palavra chave que é a base da peça: ambição em Macbeth, vingança em
Hamlet, ciúmes em Othelo. O que estávamos construindo para A Pele do
Cordeiro tinha uma questão de fundo: a amizade. E daí, por oposição
dramática, surgiu a palavra: traição. E essa palavra é a raiz tanto do
drama quanto da trama.
Nesse período, produzi diversas escaletas com
pequenas descrições das sequências, a partir das quais procurávamos
montar o quebra-cabeças de se juntar personagens em duas épocas
diferentes. Aliás, essa foi uma ideia da Chris: localizar o filme em um
passado recente. Escolhemos 1992 e 2002. Em 1992 o país vivia uma
esperança real, a sociedade havia se unido para derrubar o Collor.
Em 2002, ano em que Lula foi eleito, as esperanças
se renovavam. O filme fala sobre sonhos, portanto falar de esperança é
uma maneira de vincular o contexto à narrativa. Havia também o desejo de
que as duas épocas cruzassem a virada do milênio. O filme deveria estar
situado após o 11 de setembro, momento em que o mundo assistia perplexo
ao nascimento do novo milênio com um sabor ambíguo, combinação de
esperança e medo. Por último, pareceu interessante criar uma cadência de
dez em dez anos: 1992, 2002, 2012 (este último, o ano em que o filme
seria feito).
Começamos 2011 com reuniões onde além da Chris
participavam Teo Poppovic, Luis Amaral, Pedro e eu - e nas quais ficamos
costurando a trama e o drama, desenvolvendo as personagens, suas
trajetórias e seus finais. Talvez esse seja um resumo do escrever
roteiros: personagens, trajetórias e finais. E o final é, creio eu, o
elemento mais delicado e importante a se alcançar. É no final que reside
o significado, a razão de todo o trabalho. Curiosamente, apesar da sua
importância, o final muitas vezes "se esconde". Vamos escrevendo com uma
vaga intuição de onde devemos chegar, mas essa meta, esse "onde
chegar", é difuso e mutável. Mas como escrever é uma atividade
alicerçada em impressões e sentimentos, a instabilidade do caminho é
parte indissociável do processo. No caso de A Pele do Cordeiro, o final
só foi descoberto muito mais pra frente, perto da hora de filmar. Mas
esse ponto fica para outro post.
No entanto, não quero deixar a impressão que esse
roteiro foi feito na "porra-louquice", ir fazendo para ver onde vai dar.
E não que eu tenha alguma coisa contra a escrita mais intuitiva, pelo
contrário. Acho que tem horas que você "deve" se perder, mergulhar até
ficar sem ar. Senão não chega do outro lado. Mas também acho que se
deixar dominar pelo inconsciente pode te levar a ficar sem ar, mesmo.
Cansei de ver obras que se afogaram. Livros que abandonei, filmes que
deixei no meio. Voltando pro nosso caso, não sabíamos como era o final,
isso é fato, mas sabíamos o que queríamos dizer. Havia um conceito claro
que permeou todo o trabalho: mostrar como os sonhos idealistas da
juventude podem ser afetados e transformados pela maturidade. Numa frase
mais curta, um filme sobre sonhos e desilusões. O final, que viemos a
descobrir muito mais tarde, permanece fiel a esse princípio.
O trabalho criativo acontece, creio, quando você
se coloca num estado vigília desatenta, ou desatenção vigilante. Deixar a
intuição em estado de alerta, se nutrir de informações, discutir
conceitos, formular questões… e ficar à espreita dos "descuidos da
mente" porque as ideias e respostas surgem nos momentos em que a atenção
se desvia para o lado. As ideias surgem nas frestas do pensamento. Um
estado em que o autor se deixe tomar ao mesmo tempo que fique aberto às
questões que circulam na mente. De certa maneira, estabelece-se um
diálogo interno, onde o consciente lança perguntas e o inconsciente
responde. E as melhores respostas são as ações dos personagens. Afinal o
que interessa é o que os personagens fazem, não o que dizem, como na
vida, aliás. Claro que o que é dito importa, mas será amplificado quando
referendar ou se contrapor às ações. Isso é o que conta.
Das muitas ideias que surgem, quais as boas, quais
devem ser descartadas? É comum se dizer que a cada 10 ideias, 9 acabam
sendo jogadas fora. Isso parece verdade. A quantidade de possibilidades,
inter-relações e consequências de cada nova ideia é exponencial. Quando
se abandona um caminho, toda uma sequência de outras ideias e cenas
devem ser abandonadas em série. Esse processo é penoso, e é comum a
sensação de estar perdido, achando tudo uma merda, querendo rasgar o
roteiro. Mas com um pouco de paciência, as boas ideias se sedimentam e
mostram sua força. O tempo é o grande aliado, o grande depurador. Só o
tempo separa o bom do medíocre. Por isso, acredito que um bom roteiro de
longa-metragem precise de uns bons anos de maturação para ser filmado.
Evidentemente, o processo de criação é dialético:
um jogo entre a intuição e a razão. Aquela abre as portas, esta deve
colocar ordem na casa, selecionar o que presta e ter a coragem de jogar
fora o que é ruim, geralmente associado à autocomplacência, ao apego à
uma ideia. Muitas vezes, boas ideias devem ser descartadas. Não basta
ser uma boa ideia para permanecer. O que deve prevalecer são as
necessidades da narrativa.
Enfim, depois de duas reuniões com a Chris Riera,
eu fui para o meu sítio (o sítio que seria a locação da estória - só pra
lembrar), para escrever o primeiro tratamento. Tinha em mãos uma
escaleta detalhada, cheia de observações… e incertezas. Mas estava na
hora de colocar as coisas no papel.